Sobre maconha, novos medicamentos e velhas distorções cognitivas
Todos nós sabemos que tomar medicamento sem prescrição é perigoso. Misturar conceitos em farmacologia, entretanto, pode ser tão ou mais danoso, porque confunde o leigo, distorce o técnico e manipula a todos. Falo sobre o uso da maconha como medicamento e a mistura de conceitos entre o que é a erva chamada maconha, o medicamento advindo dela e a decisão política sobre legalização. Para saúde mental, existe uma teoria sobre essa mistura conceitual. São as distorções cognitivas que estão subjacentes às emoções e induzem os comportamentos.
Eu explico. A maconha é uma erva, não é medicamento. Fumar maconha não é terapia. Concluir que na erva existem componentes químicos com possibilidades terapêuticas também não é o mesmo que dizer que maconha é benéfica. O fato de um componente da maconha ter potencial terapêutico não deve ser argumento de legalização sensu lato. Parece fácil de perceber, mas algumas vezes o debate público da legalização, uma questão política, é confundido com o argumento técnico de que um composto presente na erva tem potencial terapêutico, o que significa que essa substância isolada utilizada em determinada dose é benéfica para algumas pessoas com determinadas condições clínicas. Em psicologia cognitiva, essa confusão se chama abstração seletiva, generalização e inferência arbitrária.
Abstração seletiva é quando se extrai um aspecto negativo de um comportamento complexo em detrimento dos demais para chegar a uma conclusão genérica (generalização) sobre outro aspecto não relacionado ao primeiro, ou demasiado genérico, e, portanto, sem evidências suficientes (inferência arbitrária). Por exemplo: ela não me chamou para ir ao cinema porque não gosta de mim (abstração seletiva), logo sou um chato (generalização e inferência arbitrária).
No caso da maconha, ocorre uma espécie de abstração seletiva ao inverso, porque a abstração é feita em cima de um aspecto positivo, em detrimento dos demais, para chegar a uma conclusão genérica e arbitrária. Mais ou menos assim: os canabinoides (composto químico presente na maconha) têm efeitos terapêuticos porque fumar maconha faz bem para a saúde (abstração seletiva), logo deveríamos legalizar a maconha (generalização e inferência arbitrária). Em psicologia, esses erros cognitivos levam ao sofrimento psíquico. Em sociologia, não devem ter efeitos benéficos também.
Mas vamos aos fatos: há algum tempo os técnicos discutem o uso dos canabinoides no tratamento de algumas doenças. Desde a década de 1970, estudam-se os receptores canabinoides presentes no nosso sistema nervoso central e as substâncias químicas presentes na maconha que se ligam a esses receptores, além dos possíveis efeitos dessas ligações. Procura-se saber em quais circuitos esses receptores estão presentes, com quais redes neuronais se relacionam, como os componentes químicos presentes na maconha atuam nesses receptores e como se comportam bioquimicamente no organismo humano, bem como qual sua função na fisiologia cerebral, entre outras curiosidades científicas.
Não é novidade, portanto. Assim como não é novidade que a ciência se interesse pela ação de algumas ervas ou compostos naturais com efeitos terapêuticos. Foi assim com o ácido acetilsalicílico (composto químico da aspirina), por exemplo, que antes de ser sintetizado pela Bayer, em 1897, foi utilizado na forma de chá por Hipócrates em 400 a.C. Na época de Hipócrates, sabia-se que o chá da casca da árvore salgueiro era um anti-inflamatório. No século XIX, com o avanço da ciência, um químico francês conseguiu sintetizar o composto e transformá-lo em medicamento. Ou seja, hoje, século XXI, a ciência dispõe de mecanismos e técnicas mais apurados para estudar, isolar, sintetizar, se for o caso, e estabelecer parâmetros farmacológicos mais seguros para o uso de compostos químicos como medicamentos. Por que não utilizá-los?
A maconha, assim como a casca do salgueiro, é uma planta com muitos componentes químicos que merecem atenção e estudos. Quais são os componentes com potencial efeito benéfico? São benéficos para quem? Esses componentes podem ser isolados? Como eles se comportam no organismo humano? Em qual dose devem ser utilizados? Quais são os efeitos colaterais? É a isso que a ciência vem tentando responder, e muitas dessas questões já foram respondidas. Por exemplo, existem na maconha diversas substâncias com ação nos receptores cerebrais humanos: o delta 9 THC, delta 8 THC e 11-OH-delta 9 THC, canabiciclol (CBL), canabielsoin (CBE), canabinol (CBN), canabinodiol (CBND), canabitriol (CBT) e outros. São cerca de 60 canabinoides.
Eles agem em receptores cerebrais chamados CB 1 e CB 2 presentes em várias regiões cerebrais, como cerebelo (responsável pelo equilíbrio), gânglios basais (movimentos), hipocampo (aprendizagem, memória), córtex cerebral (funções cognitivas e tomada de decisão), hipotálamo (regulação corporal, como temperatura e funções sexuais), amígdala (emoções), medula (sensações periféricas, como dor) e tronco encefálico (sono, regulação corporal, como temperatura).
Por aí se vê o potencial de ação dos canabinoides, tanto o potencial terapêutico quanto o de efeitos colaterais. São muitas possibilidades. Há evidências de efeitos terapêuticos para náusea em pacientes submetidos a quimioterapia; anorexia em pacientes com Aids; espasmos musculares em pacientes com esclerose múltipla; diminuição da pressão intraocular em pacientes com glaucoma; anticonvulsivantes etc. E provavelmente outras ações ainda serão descobertas em breve.
Para uso seguro, entretanto, esses compostos precisam passar por várias fases de estudo: fase pré-clínica, como isolar a substância, e mais quatro fases clínicas, para conhecer o comportamento farmacológico da substância no organismo humano e comparar sua eficácia com outros medicamentos utilizados para o mesmo fim. É assim que se constrói um medicamento. Não é simplesmente prescrever uma erva porque se sabe que ela alivia algum sintoma. Hipócrates fazia isso em 400 a.C.
Assim, é possível concluir apenas uma coisa: existem substâncias químicas presentes na maconha com potencial terapêutico e que merecem atenção. Dessa avaliação vêm a motivação científica e o estudo para o desenvolvimento de novos medicamentos. Se maconha é benéfica ou se deve ser legalizada, é outra discussão, a ser realizada em outros foros, que exigem outros elementos para avaliação. Não confundir as coisas é o mínimo e representa, além de coerência cognitiva, menor probabilidade de distorção comportamental, já que neste caso, dada a abrangência de pessoas afetadas, poderia haver consequências sociais sérias.
Fonte: SPDM – Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina