Assim é a Cracolândia: muito crack, dano cerebral e psicose
Nesta semana, estive na Cracolândia. Não foi a primeira vez, mas é como se fosse, porque o impacto é como o da primeira. É surpreendente a situação ter chegado a esse ponto. E permanecer assim por tanto tempo!!!
Estimei 150 pessoas em um quarteirão da Alameda Dino Bueno, esquina com a Rua Helvetia, no coração de São Paulo. Era um aglomerado de pessoas em condições sub-humanas, sujas, de pé no chão, cabelos desgrenhados, mãos calejadas e amarelas, unhas pretas. Homens sem camisa e mulheres em trajes masculinos ou em trajes mínimos, sujos, exalando um cheiro quase insuportável de urina e falta de banho. Muitos deles sentados no chão formando uma roda de uso de crack. Todos tinham um cachimbo próprio, de metal, e um isqueiro que às vezes era compartilhado. Não passava das 15 horas da tarde.
Do lado de fora da roda, como em um espetáculo macabro, alguns agentes de saúde, eu, policiais e outras pessoas de trajes normais e limpos assistiam a tudo, impassíveis, perplexos, sem ação, perdidos. Alguns usuários saíam e voltavam para dentro da roda, cambaleantes, falando sozinhos. Mas a maioria deles permanecia ali no meio, todos juntos, solidários, tão absortos em usar droga que pareciam não se dar conta de que estavam em um palco público, observados por policiais e agentes de saúde.
Tomei coragem e fui para o meio daquelas pessoas. Passei de um lado a outro do “fluxo”, como é chamado o aglomerado de pessoas. Fui pela calçada e quase não fui notado. No caminho, de um quarteirão via-se um bar aberto com um balconista servindo suco a algumas pessoas menos comprometidas, que conseguiam trocar algumas palavras compreensíveis. Como se fosse uma cidade à parte, macabra, medieval.
Fui para o outro lado e fiquei alguns minutos parado de braços cruzados, olhando, quase sem ser notado. Do alto de um dos hotéis, um homem gritava da janela, parecia contente, cantava, entrava e saía como se fosse uma festa de rua. Outro assistia calado da janela, como se olhasse para um desfile. Uma mulher sentada em frente a um hotel segurava uma prancheta e uma caneta, enquanto alguns entravam e saíam dos hotéis. Esse fluxo do entorno era de pessoas menos comprometidas, com vestimentas limpas.
Mas no centro do “fluxo” estavam os mais comprometidos, usando crack agachados ou sentados no chão, de cachimbo em punho. Outros circulavam para lá e para cá no meio do aglomerado de pessoas sem destino, de pé no chão. Um homem em condições semelhantes aos demais usuários estava abaixado, com um saco de lixo preto, distribuindo cachimbo, droga, bebida e objetos quebrados que eu não pude identificar a distância, mas pareciam ser panelas velhas e cobertores. Depois, ele entrou para o meio do aglomerado e o perdi de vista. Um carrinho de feira com caixas, panos velhos e sujos permanecia inerte no meio do aglomerado. Um homem passou segurando um colchão nas costas, falando sozinho, e sumiu dentro da multidão de desvalidos.
Permaneci ainda alguns minutos parado, conversando com alguns agentes de saúde, quando se aproximou um homem sem camisa, sujo, cambaleante, segurando uma garrafa pequena de bebida alcoólica, e me perguntou: “Você escolhe o começo ou o fim?”. Respondi que preferia o começo. Ele apontou para a multidão e me falou: “Eis o começo. Você não escolheu o começo? Aqui é o começo de tudo”. Tentei trocar algumas palavras, mas ele estava muito intoxicado, não me ouvia, falava sem parar e sumiu no meio da multidão sem que eu pudesse fazer nada. Assisti ao homem entrando na multidão, cambaleante. Antes, outro homem o abordou e pediu bebida, dando uma atenção surpreendente às palavras desconexas que ele dizia. Os dois conversaram algumas palavras que eu não pude entender. Frases desconexas, que só eles sabiam. Depois, ele deu a bebida ao outro, ressaltando que era só um gole. Obedientemente, o outro sorveu um único gole da bebida e saiu em direção à praça, segurando um cobertor sujo com um cuidado surpreendente.
Outro homem passou apressado segurando na palma da mão algumas pedras de crack, que pude ver com nitidez: eram três ou quatro pedrinhas pequenas de cor amarelada. Ninguém o importunou e ele seguiu em direção ao centro da multidão, sem me notar, sem notar as outras centenas de desvalidos, sem notar os policiais a distância… Até que o perdi de vista.
Outra moça, de aproximadamente 30 anos, me abordou. Ela estava com os olhos pintados de forma extravagante, mas que mostrava que ela havia dedicado um bom tempo se maquiando. Sombra azul, lápis preto puxando o canto dos olhos como o de uma rainha egípcia, olhos grandes, morena. Ela me contou que estava ali procurando uma amiga. Contou ela mesma que voltou para a Cracolândia quando perdeu o emprego de doméstica porque chegou um único dia atrasada. Culpou esse único atraso pelo desemprego, pela recaída e pela perda dos filhos. Tinha dois filhos, que agora estão sob a guarda da avó. Tentei engatar uma conversa, mas ela estava acelerada, com movimentos corporais desconexos, atabalhoados. Perguntei se tinha usado droga, ela me respondeu com naturalidade: “Ainda não”. Criticou a polícia e, em seguida, encontrou quem procurava. Uma mulher muito magra, de pé no chão, suja. As duas se abraçaram e, sem dar nenhuma satisfação, sumiram no meio da multidão, deixando-me apenas com metade de uma conversa. Tentei chamar, mas ela me olhou e me ignorou a seguir. Sumiu no meio de todos.
Um homem e uma mulher bem-vestidos se aproximaram e, indignados, me falaram que souberam da operação na Cracolândia pelos jornais. Apresentei-me como o novo responsável pelo projeto Helvetia. Ele me disse: “Eu não estava aqui ontem para ver a situação, mas, toda vez em que venho aqui, sinto náusea, vomito”. Eu não disse nada. Ele abordou um usuário e saiu conversando.
Uma moça passou por mim falando sozinha. Ela estava muito magra, com uma miniblusa e uma calça suja, de pé no chão. Ela me olhou irritada. Disse: “Eu te odeio, sai daqui”. Saiu me encarando de forma ameaçadora, falando sozinha. De longe me olhou de novo e praguejou mais uma vez antes de desaparecer no “fluxo”.
Tudo ali era desconexo, sem sentido, interrompido: as pessoas, as tentativas de conversa… Um homem cantava na janela do prédio… Parecia feliz. Ouvi o barulho de um pagode que se iniciava na esquina. Alguém me disse: “É do projeto da prefeitura…”.
Eu me preparei para ir embora. Cheguei a conclusões óbvias, quase ingênuas, mas atormentadoras:
- Ali tem muita droga. Para abastecer aquele número de usuários ininterruptamente, é preciso ter muito crack. Se cada usuário ali consome em média dez pedras por dia, são 1.500 pedras de crack só para abastecer aquelas pessoas na rua. Se cada pedra custar R$ 5, circulam naquele quarteirão R$ 3 mil por dia, ou R$ 90 mil por mês. Não parece tanto, mas é o suficiente para montar o pior cenário que eu já presenciei na vida.
- Há muitos psicóticos. Alguns com sintomas típicos, como alucinação, delírio, prejuízo da crítica, pensamento desagregado. Outros não apresentam esses sintomas típicos, mas estão com pensamento desagregado, desorganização do comportamento, prejuízo da crítica.
- Aqueles que não são psicóticos no mínimo têm um dano cerebral grave. São impulsivos, sem crítica, alguns com psicomotricidade visivelmente alterada, quase com incoordenação motora.
- Estão todos intoxicados, de forma que não é possível dizer se essas alterações são permanentes, mas estão muito alterados.
Terminei minha caminhada com a certeza de que, mesmo extremamente alteradas, essas pessoas devem ser abordadas e convencidas de que precisam sair da rua para se tratar. Isso é difícil, mas começa a ser possível quando entram em cena os conselheiros de rua, especializados em dependência química, que têm a missão de acolher e orientar dependentes sobre serviços e tratamentos disponíveis para ajudá-los.
Eu me preparei para atravessar o “fluxo” e voltar. Pensei mais uma vez que, apesar de todas as dificuldades, um novo caminho pode começar a ser traçado a partir do momento em que se consegue mostrar a essas pessoas que existem outras possibilidades além das drogas.
Fonte: SPDM – Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina