Política pública e a questão da abstinência ao uso do crack
Um paciente de 27 anos, usuário de crack desde os 20, procura atendimento porque está sentindo dores torácicas, tosse e emagrecimento. Ele está assustado com o emagrecimento e com as dores. Faz exames, recebe um diagnóstico, conversa com os profissionais e diz que quer parar de usar a droga. Aceita procurar um centro de tratamento para o crack e tomar medicações para sua pneumonia. É admitido no leito de observação para receber antibiótico endovenoso e, quatro horas depois, foge do Pronto-Socorro para usar crack.
A situação descrita acima não é incomum nos serviços de saúde e gera diferentes reações na sociedade, incluindo comunidade técnica. Há quem diga que o paciente estava mentindo quando aceitou tratamento, que de fato não quer se tratar e que neste caso não vale a pena investir em nenhum tratamento. Há quem diga que a ação da droga no cérebro turvou sua capacidade de decisão e o impeliu ao uso, mas que não devemos desistir dele e que neste caso deveríamos investir na abstinência para que ele melhore. Há quem diga que, se ele recebesse suporte para usar o crack de maneira segura, não teria apresentado pneumonia e, portanto, deveríamos investir na redução dos danos secundários ao uso, e não no uso propriamente dito. Há quem diga que a situação demonstra o fato de que a droga sempre existiu, os usuários também e que, portanto, não há o que ser feito, deveríamos desistir. Há quem diga que ele deveria ser mantido à força no Pronto-Socorro, porque não estava em condições de decidir nada e a abstinência deve ser alcançada a qualquer custo. E há muitas outras possibilidades… Qual é a mais correta? Existe uma saída única que se aplique a todos os usuários?
Questões técnicas, ideológicas, filosóficas e políticas se misturam de modo a gerar enorme confusão e, no meio dela, o maior interessado, o usuário, fica desassistido, perdido e refém de uma discussão teórica e de uma disputa intelectual. É preciso, então, colocar alguma racionalidade nessa confusão para que as condutas clínicas e as ações de políticas públicas não sejam tão atabalhoadas e confusas quanto é a discussão teórica, acadêmica.
O primeiro ponto a ser considerado: as pessoas são únicas. Os seus problemas, por mais assemelhados que sejam com aqueles dos demais humanos, estão inseridos em um contexto que é único. Pessoas com câncer de pulmão não são todas iguais, com as mesmas necessidades. Pessoas com gripe também não. Usuários de crack idem. Portanto, assim como não faz sentido estabelecer uma conduta ou política que determina que todos os gripados deveriam ser tratados com um único tipo de assistência, não faz sentido estabelecer que todos os usuários de crack deveriam receber essa ou aquela intervenção. Haverá, portanto, aqueles que não querem se tratar e querem continuar usando a droga. Outros que querem parar de usar. Alguns que terão dificuldade em parar, outros que conseguirão com mais facilidade. Qual é o caso do paciente descrito acima? É possível saber sem uma avaliação minuciosa, técnica, multiprofissional? Como podemos estabelecer que ações de saúde pública devam ser unicamente baseadas em questões filosóficas, políticas e técnicas genéricas? Talvez seja melhor dar condições para que cada caso seja avaliado individualmente e que o profissional tenha condições de decidir entre várias possibilidades de conduta. Assim, é possível que algum paciente se beneficie da internação para interrupção imediata do uso. Que outro se beneficie de acompanhamento e orientação e motivação, e assim por diante.
O segundo ponto: as evidências científicas sobre o que funciona e o que não funciona devem estar sempre à mente de quem avalia. As evidências apontam, por exemplo, em estudo brasileiro publicado no Journal of Addictive Disease em 2011, que 43 de 102 usuários de crack seguidos por 12 anos conseguiram abstinência. Isso equivale a 40% da amostra. Vinte e sete deles haviam morrido, o que equivale a 26% da amostra*. Quem serão aqueles pacientes que ficarão abstinentes? O paciente descrito acima estaria em qual grupo? Essa incerteza sobre o futuro do usuário do crack é a mesma que ocorre em pacientes com câncer, por exemplo. Na dúvida, é melhor investir em todos, porque qualquer diminuição nessa mortalidade seria importante. E mais pesquisas precisam ser realizadas para que se descubra o que funcionou e o que não funcionou.
O terceiro ponto: há uma diferença marcante entre meta e condição. Dizer que a abstinência deveria ser uma meta é muito diferente de dizer que a condição para que um paciente fique em tratamento é que ele esteja abstinente. Guardadas as diferenças, o mecanismo seria o mesmo que dizer ao paciente com pneumonia que ele não deve tossir para que continue se tratando. Não faria sentido. Mas faria muito sentido dizer que a meta do tratamento é que ele pare de tossir uma hora. Algumas vezes será fácil atingir a meta, outras não. Devemos desistir quando não está fácil? Devemos abandonar quem não consegue? Devemos subestimar as potencialidades de qualquer pessoa com câncer porque a mortalidade é alta e a cura difícil? Com usuários de crack, o raciocínio deveria ser o mesmo.
Quarto ponto: conduta clínica e política pública são coisas diferentes. As metas e os meios de tratamento são decisões clínicas e devem obedecer aos critérios de validação científica e testes clínicos para resolução de problemas individuais, daquele paciente especificamente, descrito acima, que está com pneumonia no Pronto-Socorro. Política pública é outra coisa: vou discutir neste blog em outra ocasião qual é seu conceito. Por ora, devo dizer que, quando as coisas se misturam, o resultado não é bom. As políticas públicas não deveriam discutir a abstinência ou a redução de danos. Assim como não se discutem a cura ou a não cura da aids, ou da pneumonia, ou da esquizofrenia, ou qualquer outro problema. Isso é meta clínica, não política pública. As políticas deveriam criar condições para que cada paciente seja avaliado dignamente e para que todos eles tenham o direito de receber todas as intervenções que encontrem respaldo na literatura técnica, e não apenas uma.
De minha parte, enquanto houver esperança vou investir. Sem privar o paciente de nenhuma intervenção. E nunca vou abandonar o paciente nessa jornada.
*Dias AC1, Vieira DL, Gomes LS, Araújo MR, Laranjeira R. Longitudinal outcomes among a cohort of crack users after 12 years from treatment discharge. J Addict Dis. 2011 Jul-Sep;30(3):271-80.
Fonte: SPDM – Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina